domingo, 10 de maio de 2009

Ishmael e a Caça a Reyna (ou Moby Dick do Século XXI)

Parte IV

Do fundo de meu poço, escutei de repente muitas vozes, novas vozes: eram humanas, delicadas, quentes... doces! Diziam o contrário do que as gárgulas enxofrentas acusavam! e não só isso, apontavam algo de errado na bússola que carregava comigo; deram a entender que havia algo de muito viciado e corrompido nela. Algo podre.
Em pouco deixaram de ser só vozes e passaram a figuras, rostos. Eram fadas púrpuras, princesas angustiadas, leões altivos, magos arcaicos, palhaços inominados, morenas que requebravam como ninguém, um pompom-coelhinha, asnos de penas, pediatras da Columbia University, molhos Rosé, uau! ó céus! Quantos! Vieram todos como fechos de sabedoria e luz em meu socorro! Pude identificar vários semblantes! Ó meus queridos mestres da Escola de Curandeiros do Fundão (de todas as distinções e hierarquias)! meu clã-malaxahulense, minha família toda, meus amigos da faculdade! minhas vivências construtivas e destrutivas e seu balanço final bem positivo! e... meus pacientes. Nesse momento não pude conter meu choro de homem do mar – meus olhos ficaram totalmente marejados. Vieram me trazer a palavra. O verbo. Todos que já tinham sido atendidos por mim nesses anos todos, coisa de algumas centenas: adultos, neo-natos, já falecidos, idosos, gestantes, mulheres, crianças, ah! Principalmente as crianças! Elas riam e sorriam espalhando candura à minha tormenta interna.
Pude decifrar sua mensagem: todas as pessoas e coisas que realmente tinham valor em minha pequena existência estavam lá falando ao meu ser, para que eu “NÃO NAUFRAGUE OU ACREDITE NAS ABERRAÇÕES COCÔZENTAS! NOS DEMÔNIOS DISFARÇADOS DE GENTE! ALAS, FILHO DE OGUM! SUA HORA CHEGOU! DÊ A VOLTA POR CIMA E SOLTE UM PUM NO MUNDO! E QUE ESTE PUM TENHA COR LARANJA E CHEIRO DE LAVANDA! HOMEM, SUA ALMA É VERDE! VERDE! VOCÊ SEMPRE FOI UM DUENDE VERDE! DEIXE PARA QUEM NÃO TEM COR E CRIATIVIDADE PARA VOAR MORRER NA MESMICE, REPETINDO A REGRA E O SOCIALMENTE ESPERADO: NASCER, CRESCER, CASAR, GANHAR DINHEIRO, REPRODUZIR E MORRER!”
E tudo virou silêncio e calmaria. Uma sapiência divina inundou minha psique, e de repente eu Soube. Soube do paradoxo psicanalítico, que versa da tendência humana de dar mais valor e peso às críticas do que aos elogios (é necessário um elefante de louvores para contrabalançar uma anódina censura); Soube que o maior norte na medicina é o paciente, e se ele acha você incrível, siga a sua dita; Soube que tudo de ruim que diziam sobre mim era aleivosia e que, na verdade, eu era phodda com ph e dois d’s mesmo; Soube que meus inimigos tinham pirú pequeno e vulva atrofiada; Soube que a bússola que eu carregava em meu peito estava corrompida e viciada pelas crenças torpes que comprei; Soube de todo o assédio moral que tolerei; Soube de toda a vida que perdi seguindo esta bússola vil e sem perspectiva do que realmente importa. Não hesitei! abri a escotilha e joguei fora aquela antiga agulha magnética. Vi a peça afundar até as profundezas, deixando um rastro de bolhas negras à medida que ganhava braças e braças de nunca mais.
Os marujos desciam correndo do convés, dizendo em sobressalto que a maior tempestade que eles já viveram acabara de passar. Perguntaram se estava tudo bem comigo, se eu havia me machucado com o chacoalhar do navio; onde eu afinal estava enquanto o mundo caía... ao que permaneci silente. Apenas pensei comigo mesmo que a maior tempestade estava dentro de mim. Não senti chuvarada, nem os vagalhões da fúria externa. Meu mar era paz e calmaria; era certeza de quem eu era, de onde vinha, e para onde estava indo. Com direito a todos os “porquês” e “para quês” de uma vida com sentido.
Foi quando vi no sopé da escada que levava ao convés, um objeto brilhando. Emitia um brilho tênue mas forte; bem nítido! parecia um farol de milha daqueles que orientam as naus e galeras quando falta iluminação no mar. Tomei o objeto, era uma bússola! Dizia em seu verso:
ὁ Φάρος της Ἀλεξανδρείας (O Farol de Alexandria) era uma torre construída no Século III a.C, na ilha de Faros em Alexandria, Egito, para servir como marco de entrada do porto desta cidade e, posteriormente, como farol. Considerada uma das maiores produções da técnica da Antigüidade, foi construída em 280 a.C. pelo arquiteto e engenheiro grego Sóstrato de Cnido a mando de Ptolomeu.
Sobre uma base quadrada erguia-se uma esbelta torre octagonal de mármore com uma altura que variava entre 115 e 150 metros de altura, que por mais de cinco séculos manteve-se entre as mais altas estruturas feitas pelo homem. Em seu interior ardia uma chama que, através de espelhos, iluminava uma distância que chegava a 50 quilômetros, daí a grande fama e imponência daquele farol. Fizeram-no ser identificado como uma das sete maravilhas do mundo antigo por Antípatro de Sídon. Este amuleto é feito com relíquias do Farol. Que seja ele sua orientação, caro peregrino-do-mar.
Fiquei assombrado com tudo aquilo. Presente de quem? Iemanjá? Poseidôn? Chronos, o presente do presente? Ainda bolado, subi no convés, e a nova bússola já apontava definitiva para sudeste. Seria onde Reyna estaria me esperando? Seria lá o lugar da liberdade plena? Convenci os demais tripulantes que o prêmio da posteridade dependia daquela orientação, e o capitão logo assentiu, gritando: “Prancha de estibordo, ali! Correr a bombordo! – depois da prancha, a estibordo! À meia-nau! À meia-nau! Velas!” e o navio então seguiu, através do rompante da manhã do dia 04/04/2009, em busca de Reyna.

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